Revista Væranda

A cultura portuguesa é algo que sempre reverei. Tenho orgulho em ser português, em formar parte de um grupo relativamente pequeno de pessoas que vem daquela terra que abraça o mar. Os portugueses são de uma raça especial, de um tecido que não rasga, de uma fibra que não quebra. Como diria o meu Sporting, somos daquela raça que nunca se vergará, mas sou fanático só de vez em quando.

Não vou ser desonesto, nunca li Camões na escola. Vivi no estrangeiro seis anos, e nunca me passou pela cabeça ser um assunto assim muito importante. Balancear as aulas de árabe com uma leitura de Os Lusíadas seria difícil, mesmo com o tempo livre que tinha. Estava mais preocupado com encontrar amigos ou conseguir perceber porque é que esses novos amigos rezavam cinco vezes por dia. As coisas mais abstratamente importantes parecem ser de caráter discutível quando estamos preocupados com as coisas do dia-a-dia. Quiçá, se calhar é esse o problema da humanidade. Não sou pessoa para o dizer.

A realidade é que cada vez mais, se calhar pelo facto de me encontrar novamente no estrangeiro, desta vez como adulto, me abraço ao facto de ser português. De ser de um país com cultura rica e uma história interminável. De ser de um país que tantas vezes se encontrou do lado agudo da espada e que dessas tantas vezes não se rendeu. De ser de um país que percebe a vertente feroz dos seus antepassados, e que reconhece o seu malvado também. É como disse, nunca li Camões, mas, estando hospedado nesta minha terra enquanto espero o recomeço das aulas numa cidade que a minha bisavó estranha, é difícil aguentar o amor que tenho por este país. O amor que este homem, o qual hoje em dia dá nome à Língua de Camões, consegue fazer tão bem materializado em palavras. O Professor José Hermano Saraiva, paz à sua alma, entende que para descrever Portugal da maneira mais apta, e igualmente da maneira mais curta, é necessário só estes três versos, três versos que formam a ‘Bíblia Portuguesa’, Os Lusíadas.

“Eis aqui, quase cume da cabeça

De Europa toda, o Reino Lusitano,

Onde a terra se acaba e o mar começa.”

Reinado já não é, e Lusitano acho que também não. Mas sim, continuamos aquele lugar onde a terra se acaba e o mar começa, isso nunca mudará. Geograficamente, claro que não, mas também com uma clareza quase igual, culturalmente também. Não somos um povo unido por uma raça, mas sim unido por uma cultura, pela ideia da liberdade e continuidade, arrisco dizer, pela ideia portuguesa. As origens dessa ideia portuguesa foram exatamente o que me fizeram ler Camões; num âmbito, talvez fútil, de perceber o que faz este país. Porque é que há tantos séculos cá continuamos? Lusus, de onde deriva o termo lusitano, era um companheiro do deus romano do vinho e da insanidade, se calhar uma pergunta de esta insensatez já vem de longe.

Eu li esse grande épico. O épico que forma não só esta minha cultura, mas também a língua falada por quase 300 milhões por volta do mundo inteiro. Li e reli, página após página, atravessando dificilmente a poesia antiga de Camões. Uma tarefa custosa, mas também igualmente elucidativa. “Que bela obra fez este homem”, dizia eu para mim próprio, já atingido pelo vocabulário de Camões. A maneira como as palavras fluem de verso para verso, como a água de uma fonte nascente agarrando-se as bordas de um rio. As comparações e superações dos épicos sobre deuses romanos e gregos, pondo o Português em desacordo com a supremacia lírica e cultural das línguas antigas. Camões cria o seu próprio titã, de maneira a mostrar que os portugueses travessavam território que nem as ilustres civilizações gregas e romanas se atreveriam a navegar. Retrata a história de uma tripulação inteira, e não de um só homem como faz Homero com Achille e Odisseu, ou Virgílio com Eneias, para mostrar que todos os Portugueses são heróis, todos eles igualmente valentes. O panteão dos deuses romanos e gregos tentam sabotar Vasco da Gama e os seus homens, mas o Deus católico permanece vitorioso em cada vez. Portugal ganha, supera, e o medo de Baco é realizado quando nos tornamos deuses.

Lendo Os Lusíadas faz parecer quase óbvio a motivação nacional portuguesa. A ambição de fazer diferente, de superar, de buscar o novo, de enfrentar o obscuro. Camões, tal como a maior parte dos portugueses, ama Portugal. Todos os portugueses têm a mesma intenção de ver Portugal com sucesso, tanto no palco doméstico como no teatro global, isso é um facto absoluto. Temos visões, às vezes diametralmente, diferentes, mas todas querem o melhor para Portugal, o melhor para os Portugueses. Desde a nossa incepção, há quase 900 anos, olhamos para o escuro, para aquele abisso infinito e dizemos que o enfrentaremos com coragem, com outros se possível, mas sós se necessário. Sempre em busca de terras mais verdes, de vidas mais virtuosas.

No fim de contas, encontrei em Os Lusíadas exatamente o que já tinha em mim sobre o que significa ser português. Encontrei glória, sofrimento, paz e conflito. É difícil para mim explicar o que é ser português, é uma cultura heterógena, uma identidade sem identidade, mas, nas palavras de Camões encontro aconchego, encontro serenidade portuguesa, encontro-me a mim próprio.

 

Pedro SRC

Pedro Sousa Reis Casquinha

Pedro é um estudante de primeiro-ano na universidade, interessado em ciência política. É nascido em Portugal, vivendo em Lisboa quase a sua vida inteira à parte de 5 anos que passou no Koweit. É de Cascais, e como bom português gosta de jogar à bola, ir à praia, e estar com amigos. Fala Português, Espanhol, Inglês e Árabe, e tem um cão em casa chamado Kaiser. Sempre estudou em escolas internacionais, e está muito animado de escrever na Revista Væranda.