Nesses dias, ao assistir uma sequência de capítulos da re-encenação de Pantanal, me peguei vendo uma discussão muito importante sobre alienação parental e em outro ponto sobre abandono. Na saga da novela, por diversas circunstâncias, há o afastamento, antes de tudo geográfico do pai, José Leôncio, de seu filho, Joventino, durante toda a sua infância e adolescência. Isso seta a trama para a segunda fase da novela, em que Joventino ao descobrir que o pai, sim, é vivo, vai em busca dele, e com isso uma série de conflitos emergem.
No audiovisual, quando da escrita de roteiro é sempre necessário focar na descoberta de conflitos, e por isso as duas fases de Pantanal se complementam na medida da geração de um conflito geracional e pautado nas relações de pai e filho que não se conhecem.
“A arte imita a vida” e não posso deixar de pensar o quanto posso ver essas coisas na minha própria. Não tenho filhos, mas tenho dois sobrinhos, João e Lucas, que são o brilho da nossa família. Eu e a Larissa, por questões profissionais, acabamos não vivendo na mesma cidade que eles, e por conta disso, não conseguimos acompanhar o crescimento deles como queríamos. Ambos nasceram enquanto morávamos em Chicago, e ao retornarmos ao Brasil, não ficamos em São Paulo, mas sim em Brasília, onde era empregado público.
Essa questão de ausência do pai retratada na novela, me deixou pensativo. Eu pessoalmente tive a sorte de poder ter tios e tias muito presentes na minha vida, e que sem dúvidas enriqueceram minha visão de mundo. Enquanto crescia em Jundiaí, todas as irmãs do mau pai moravam na mesma cidade, e era muito comum nos encontrarmos quase todas as semanas. Na família da minha mãe, a coisa era um pouco diferente, pois a família é do Rio Grande do Sul, e os nossos encontros se davam em férias ou feriados. Mesmo assim, tenho lembranças memoráveis desses encontros.
Nessa primeira carta, eu quero falar sobre obediência e responsabilidade.
Nesses últimos dias, meus sobrinhos, o Brasil assistiu nos jornais o desaparecimento, e depois a confirmação de morte de um Indigenista, e um Jornalista estrangeiro. Um Indigenista (também chamado de sertanista) é uma pessoa que atua nas relações dos povos indígenas com a sociedade civil ampliada. No Brasil, um importante agente nesse processo é a FUNAI, que é um órgão do governo que foi criado para atuar nessas relações. Eu não sou indigenista, antropólogo, e minha formação é circunscrita ao audiovisual e à algumas leituras em Geografia, mas tenho certeza que somente a existência da FUNAI não seria suficiente para dar conta dos 500 e tantos anos de relações, com frequência, conflituosas entre as nações indígenas, e a sociedade civil brasileira.
Meus caros, Bruno Pereira era um servidor público federal, além de ser indigenista. Nos últimos anos, porém, ele estava licenciado da FUNAI, por conta de mudanças na maneira que aquele órgão era gerenciado, e no que eram suas prioridades. O noticiário na Amazônia é amplo e farto, mas podemos colocar questões relativas à pesca ilegal, desmatamento, narcotráfico, e por aí vai. A FUNAI lida com as questões indígenas, e por isso não teria que lidar com isso diretamente.
Quando falo em obediência, Bruno Pereira, quanto outros servidores, seguem ordens do governo. Não obedecer às ordens do governo implica desde processos administrativos à tipificação criminal. Quando o governo está desgovernado (um dia conto mais sobre esse tema), as ordens do governo deixam de fazer sentido, deixam de ter respaldo no correto uso da máquina pública. Nesse sentido, é completamente compreensível que Bruno Pereira se licenciasse do seu cargo, por discordar da gestão. Ele não poderia desobedecer ao governo, mas poderia não mais fazer parte dele naquele momento. Se tivéssemos uma lupa mágica, poderíamos ver com clareza quantas pessoas se desligam de governos, pela simples discordância com a gestão desgovernada (e os riscos que isso implica à sociedade, e, principalmente, aos servidores envolvidos). Ao se desligar, ele não precisa mais obedecer ao governo. Somente às leis.
Nesse sentido falo também de responsabilidade. Bruno sabia que era uma pessoa que tinha uma capacidade rara de articulação com as entidades (e os) indígenas, o que lhe colocava em uma posição muito privilegiada, pois poderia ajudar as pessoas dessas comunidades, a buscar soluções para elas. Como servidor federal, provavelmente tinha um bom salário, e poderia ter ido trabalhar em outro segmento, em outra cidade, ou mesmo outro país. Um indigenista com a sua bagagem poderia ser um professor visitante nas melhores universidades mundo afora. Mas ele sabia que essa mesma bagagem fora adquirida com os saberes daqueles que mais precisavam de sua ajuda.
Não vou entrar na discussão do crime em si, uma vez que o noticiário é rico, e o assunto ainda se desenvolve nessa data. Mas o que queria falar para vocês, meus queridos, é que Bruno Pereira sabia de suas responsabilidades, morais inclusive, e que apesar de um conflito relativo à obediência, ele conseguiu não desobedecer ao governo, mas também contribuir com àqueles que mais o precisavam. Mesmo com a sua morte, ele conseguiu trazer luz para uma série de questões caras aos povos que vivem na Amazônia.
Nessa carta não falei do jornalista, Dom Phillips, que foi essencial para que o caso não passasse despercebido. Isso fica para a minha próxima carta, em que quero falar sobre como é importante conhecer pessoas, em especial estrangeiros.
Tenham um ótimo final de semana. Um beijo e um abraço do tio.